Futebol

Fellipe Bastos se declara ao Vasco: 'Tudo o que eu aprendi e senti na vida'

Tudo o que eu aprendi e senti na vida tá aqui.

Nessas paredes.

Tudo, tudo, tudo.

Olha só pra isso. O futebol pra mim hoje é esse monte de fotografias penduradas na parede. E como doem… Ô! Saudade demais. Eu até evito entrar aqui.

Como faz pouco tempo que parei de jogar, ainda é difícil rever a minha caminhada sem me emocionar. Mas não tem jeito. Vira e mexe eu venho, olho pra elas, lembro dos amigos, dos treinos, das viagens, das torcidas cantando e agitando as bandeiras, dos estádios cheios, do pagode no ônibus, daquele frio na barriga antes do jogo… 

Pô, aí eu choro igual criança. Saudade dói, viu. Mas ainda bem que é assim. Mais grave que sofrer de saudade é não ter nada do que sentir saudade, é ou não é? E nesse ponto eu sou um abençoado, graças a Deus: o futebol encheu um contêiner inteirinho de saudades pra mim.

Ó essa aqui. Eu e meu irmão em nossa casa na Penha, subúrbio do Rio, onde a gente nasceu e foi feliz à beça. Os dois sentadinhos no tapete, vidrados na TV, do lado a bola que o nosso pai deu de presente.

Brasil x Camarões, Copa de 94.

Acho que é a memória mais antiga que eu tenho: o Dunga roubando a bola no meio de campo, tocando pro Romário, ele perseguido por de três zagueiros imensos, meu coração saindo pela boca, o toque de biquinho pro gol e aquela alegria que parecia infinita. Eu tinha 4 anos e nem sabia falar direito o nome do Baixinho. Mas ele foi o meu primeiro grande ídolo no futebol. E era de lei: naquela Copa, depois dos jogos do Brasil, a gente descia pra bater bola numa quadrinha que tinha perto de casa e eu era o Romário. Meus amigos podiam ser o Bebeto, o Zinho, o Jorginho, quem eles quisessem. Mas eu era o Romário.  

Foi nessa quadrinha que me viram jogar e foram pedir pro meu pai me levar no Florença, um time de futebol de salão do bairro. Disseram que eu tinha boa coordenação motora, era dedicado, entrava confiante em todos os lances, chutava forte e que eu podia ir no clube treinar à vera, se quisesse. E assim eu comecei.

Do Florença rumei pro Fluminense, uma passagem curtinha, e com 10 anos cheguei no Botafogo, onde fiz toda a minha base. Eu aos 16, saca só… Nesse dia eu joguei o meu primeiro jogo como profissional. A foto tá meio desbotada, mas dá pra ver bem: camisa do Botafogo, sorrisão na cara e esperança na alma. O primeiro ano de profissional foi incrível. Fui campeão da Copa das Confederações sub-17 com a Seleção, disputei o Pan-Americano no Rio, meu quintal!, e ainda curtia a euforia das coisas boas acontecendo rápido quando chegou uma proposta do PSV Eindhoven.  

Mas lá na Holanda só deu pra bater foto de treino na neve mesmo. Tá vendo? Dezembro de 2007. Que friaca, irmão, vou te falar. Abaixo de zero. Fiquei dez dias, porque eu e o PSV não chegamos num acordo satisfatório. Conheci o Fágner e o Cássio, que eu reencontraria naquela fatídica Libertadores de 2012, Vasco x Corinthians, e fui embora.

Próxima estação: Lisboa. Benfica. E aí sim eu tenho muita fotografia, embora as lembranças que elas me trazem sejam um pouco estranhas, uma mistura de felicidade, arrependimento e aprendizado.

A que eu gosto mais é essa aqui: 18 anos, com cabelo ainda, bem moleque. Dia 23 de maio de 2009. A foto é da comemoração do golaço do meio da rua que marquei contra o Belenenses. Até hoje não esqueço: 36 metros de distância, um tiro indefensável no ângulo. Chorei demais esse dia, porque eu vivia um momento complicado que acabou me custando a permanência no Benfica. Por isso saí assim na foto, ajoelhado depois do gol, com mãos cobrindo o rosto num gesto de incredulidade e desforra, eu acho.

Um ano antes eu era um dos homens de confiança do Quique Flores, o treinador. Mesmo não jogando todas as partidas, porque o elenco rodava bastante, eu sabia que ele botava muita fé em mim. Mas um dia a gente foi jogar contra o Rio Ave e o Pablo Aimar, que era o craque do time, me pediu pra ir buscar uma chuteira pra ele no vestiário, que ele precisava trocar. Eu fui e esqueci a minha camisa de jogo lá. Quando voltei pro campo, o titular da minha posição, o Carlos Martins, tinha batido a cabeça e desmaiado. O Quique Flores me chamou pra entrar e… Meu Deus do céu! Cadê a minha camisa?

Na Europa eles prezam muito essa parte da responsabilidade. Principalmente se o jogador é novo. Ficam o tempo todo atentos pra ver se você é “profissional”. Eu vinha bem até ali, mas esquecer a camisa de jogo no vestiário e não estar pronto quando o treinador precisou… Pô, isso aí foi um tropeço enorme e de certa forma abreviou a minha passagem pelo futebol europeu.

Me senti péssimo. Porque eu nunca fui irresponsável, pelo contrário. Fui sempre um cara certinho, nunca faltei em treino nem fiz corpo mole. Mas ali a confiança se quebrou, a do treinador, a do clube e a minha também. Acabei emprestado pro Belenenses, depois pro Servette, da Suíca, e, quando voltei pro Benfica, só não foi pior porque marquei aquele golaço.

Além de tudo, a minha esposa contraiu tuberculose e estava fazendo tratamento no Brasil. Fiquei sozinho em Lisboa, me afundando um pouco por dia. A minha cabeça virou uma confusão. Eu não sabia se parava de jogar, não sabia pra onde ia, se tentava resgatar a minha confiança… Eu estava decepcionado comigo mesmo e com o futebol.

No fim da temporada vim pro Brasil de férias sem enxergar uma saída. Eu precisava acreditar em mim de novo, dar a volta por cima e seguir em frente. Em casa, meu pai dizia pra eu sossegar o espírito, e a minha mãe rezava. Acho que poucas coisas seriam capazes de me tirar daquele sofrimento e me mostrar alguma luz. Mas uma delas, a melhor de todas, aconteceu.

O Vasco queria me contratar.

O VASCO, cara!

O Vasco do Romário, do Edmundo, do Felipe, do Juninho Pernambucano, do Pedrinho, de todos os meus ídolos.

O Vasco do meu coração!

Só existia um lugar no mundo onde eu poderia me reencontrar, recuperar a minha confiança e a minha vontade de jogar. E esse lugar era São Januário.    

Quando eu cheguei, passei dez partidas sem sequer ser relacionado. Eu só treinava e nunca ia pro jogo. Mas aguentei firme, confiante. Era o Vasco, pô! Minha hora ia chegar mais cedo ou mais tarde.

Essa foto aqui é do dia que ela chegou. Rapá, como é bonita essa camisa preta do Vasco, né não? Coisa linda. Isso aí foi no jogo contra o Ceará, no Castelão. A minha estreia. Eu não estava relacionado pra essa partida. Já ia subindo pra assistir da arquibancada quando alguém sentiu no aquecimento e o PC Gusmão, treinador na época, mandou me chamar. 

Fiquei no banco falando sozinho: “Se eu entrar tenho que fazer alguma coisa diferente, porque esse pode ser o jogo mais importante da minha vida, que vai definir o meu futuro”. Entrei faltando nove minutos. A gente vencia por 1 a 0 e o Ceará dando um calor, querendo o empate pra não perder a invencibilidade em casa. 

Falta na intermediária.

Opa! Era a minha chance.

Acho que fui até meio folgado, porque entrei na frente de todo mundo, confiança lá em cima: “Deixa que eu bato essa, pessoal. Deixa comigo”. Cobrei em cima da barreira, mas a bola voltou pra mim. Então chutei de novo.

Gol!

Eu chamo esse de o “gol do renascimento”. Olha a minha cara na foto. Cara de quem tirou uma tonelada das costas. 

Ô saudade… Era um grupo maravilhoso, esse que o Vasco começou a formar ali, em 2010. E o Diego Souza à certa altura foi o grande diferencial. Não só pelo que jogava, mas pelo papel que puxou pra ele mesmo, o de ser o elo entre os mais jovens como eu, Dedé, Rômulo, Fágner, e os mais experientes como Felipe, Éder Luiz, Ramon, Eduardo Costa, Prass.

Só existia um lugar no mundo onde eu poderia me reencontrar. E esse lugar era São Januário.

- Fellipe Bastos

Desse caldo bem temperado saiu o título da Copa do Brasil de 2011. Claro que tem foto pra lembrar. Essa aqui: Éder Luiz, Alecsandro e Diego Souza formando o Trem Bala da Colina depois do nosso segundo gol contra o Avaí, na semifinal.

No jogo de ida, em São Januário, empatamos em 1 a 1. Na volta, na Ressacada, o nosso treinador, que era o Ricardo Gomes, deu o time no vestiário, escalou os titulares e se calou. Sem resenha, sem nada, ele só entregou um panfleto nas mãos de cada jogador, um por um. Era uma propaganda que ele tinha recolhido quando descemos do ônibus. Tava escrito assim: “Para o torcedor do Avaí, passagem, hospedagem e ingresso da final”.

Cara, nós ficamos muito mordidos. Entramos em campo querendo trucidar o Avaí. E confiantes de que íamos fazer isso. Com 15 minutos já estava 2 a 0 pro Vasco. Depois vencemos o Coritiba na decisão e quem ganhou passagem fomos nós. Uma passagem para a disputar a Libertadores! E tudo isso com a camisa do meu time de infância… Você pode imaginar como eu me sentia.

Eu não tenho nenhum sentimento ruim em relação àquela Libertadores, sabia?

Claro que é decepcionante ser desclassificado, mas, no fim do jogo contra o Corinthians, a sensação era de dever cumprido e, mais do que isso, de plenitude por ter feito parte de um grupo histórico do Vasco.

Quando eu pulei a placa de publicidade e corri pra abraçar o Diego Souza, era essa sensação que eu carregava e queria transmitir pra ele, porque eu sabia como o Diego estava se sentindo. O cara não perdia aquele tipo de gol. “Levanta a cabeça, irmão. Nós lutamos. O Vasco é time de lutadores. Entramos pra história de um dos maiores clubes do Brasil e jamais vamos ser esquecidos”, foi o que eu disse pro Diego quando abracei ele.

Fonte: The Players Tribune
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