Há três anos, o futebol brasileiro passou por uma das maiores transformações de sua história, com a regulamentação da lei das SAFs e a entrada de investidores em clubes tradicionais. Serão seis delas na Série A de 2025. E os resultados já aparecem. O Botafogo de John Textor e sua Eagle Football terminou este ano campeão brasileiro e da Libertadores. Agora, o momento é de amadurecimento, o que passa por novas aquisições, revendas, regionalização e litígios. Mas há uma certeza: trilhamos um caminho sem volta.
Essa convicção se ampara essencialmente na mudança de patamar que as SAFs permitiram aos historicamente combalidos cofres dos clubes brasileiros. Embora o exemplo do Botafogo grite, não é preciso já ser vencedor para comemorar a nova fase. Clubes como Bahia e Fortaleza trilharam, em 2024, possivelmente as melhores temporadas de suas trajetórias, na esteira do fim da fase associativa.
Por outro lado, no Rio, Vasco e 777 Partners viveram litígio com o derretimento financeiro dos americanos. Agora no comando do futebol, a associação busca um novo investidor. Já em Minas, o Cruzeiro, cuja SAF abriu o caminho, foi pioneiro também no movimento de revenda. Em abril, Ronaldo passou os 90% que tinha do futebol celeste ao empresário Pedro Lourenço com enorme lucro. A temporada foi de cofres abertos e final de Sul-Americana, mas terminou com perda da ida à pré-Libertadores. Por outro lado, há grandes expectativas para a próxima temporada, como mostram as movimentações da Raposa no mercado.
— A lição básica é de que a SAF sozinha não é solução mágica. Sem dono estruturado, planejamento, processos, investimentos e objetivos claros, o veículo societário é igual a uma associação. Um exemplo é o Vasco, que, por escolher equivocadamente seu parceiro, naufragou. E não era novidade que a 777 Partners se tratava de um investidor controverso — pondera Cesar Grafietti, especialista em economia do esporte e sócio da consultoria Convocados.
Ainda assim, o especialista aponta para um balanço positivo em 2024 e vê evoluções estruturais, como no caso do Botafogo. E considera que o próximo passo das SAFs atuais é se mostrarem realmente diferentes das associações. Mais que resultados, elas precisam de “comportamentos sustentáveis”. Grafietti destaca os casos de Cruzeiro, “que gastou sem critério para formar um time comum” e Atlético-MG, que “ainda não entendeu qual é seu projeto”.
O amadurecimento do mercado também foi acompanhado pela evolução e pelo surgimento de projetos regionais e em divisões inferiores. Em Minas, o Athletic, de São João Del Rei, sagrou o acesso à Série B no mesmo ano em que fez negócio por 21,5% do seu futebol com um grupo italiano. O Londrina, que busca a volta à segunda divisão, hoje é comandado por Guilherme Bellintani, ex-presidente do Bahia. No negócio mais recente, a Portuguesa foi adquirida em parceria de três empresas (Tauá Partners, XP Investimentos e Reeve), com aporte de R$ 1 bilhão acertado. A ideia é reformar o Canindé e levar o tradicional clube de volta à elite.
— Temos bons projetos de SAFs em divisões menores. Faz sentido entrar em times regionais, porque há espaço para construção de uma estratégia. O risco é acelerar demais e cair na pressão de ter que entregar resultados rapidamente. Porque futebol é feito no longo prazo, construindo estruturas, atletas, elenco, formatando a cultura esportiva. Casos de sucesso rápido costumam ser voos de galinha, porque não têm alicerce sólido — avalia Grafietti.
No Brasil, o Flamengo é o grande exemplo de clube associativo que conseguiu se reestruturar sem se transformar em empresa. O momento, porém, era outro. Foram longos seis anos para equacionar as dívidas e mudar o modelo de gestão até obter resultados financeiros, com receitas bilionárias, e esportivos, com taças nacionais e continentais.
Hoje, os investimentos nas SAFs não permitem aos clubes associativos o tempo necessário para uma reestruturação por meios próprios. Até chegar lá, eles podem ter sido ultrapassados. Não é por acaso que mais outros tradicionais já discutem internamente a criação das empresas. Pelo menos sete integrantes da Série A se encontram nessa etapa, com ou sem ressalvas. Ao longo do ano, em conversas com dirigentes, O GLOBO ouviu diagnósticos parecidos: é preciso soluções para não ficar para trás.
— O tempo de sucesso das SAFs também é relativo. Quando se faz esse tipo de negociação, há um período mínimo para o investidor ficar com o ativo. Talvez numa segunda leva, como o Cruzeiro foi o primeiro a fazer, vamos perceber se se valorizou ou não, se é atrativa para os atletas ou não — explica Pedro Daniel, diretor-executivo da Ernst&Young.
Ainda há, no entanto, fatores que afugentam mais investimentos. Apesar de a Lei da SAF ter regulamentado a criação dos clubes-empresa, existem pontas soltas, como um ambiente regulatório mais robusto.
— O investidor, quando vai alocar o dinheiro em algum lugar, faz a leitura de risco, se há segurança jurídica para saber o quanto deve arriscar ou não. Aqui, carecemos de um fair play financeiro. Um fundo soberano, por exemplo, pode aportar um bilhão de dólares e quebrar a indústria. Não tem nada que mitigue o risco da lavagem de dinheiro — acrescenta Pedro Daniel.
Um dos motivos para o debate sobre fair play já está na mesa. Com maior liquidez no mercado do futebol, tudo ficou mais caro. Segundo levantamento do Bolavip Brasil, nos últimos cinco anos, a média salarial dos jogadores da Série A aumentou 13,5% por temporada. O percentual é maior que nas cinco maiores ligas europeias — Espanha e Itália, inclusive, sofreram retração.